TACACÁ
Tacacá é uma iguaria da região amazônica brasileira, em particular do Pará, Acre, Amazonas, Rondônia e Amapá. É preparado com um caldo fino e bem temperado geralmente com sal, cebola, alho, coentro do norte, coentro e cebolinha, de cor amarelada, chamado tucupi, sobre o qual se coloca goma de tapioca, também conhecida como polvilho, camarão seco e jambu. Serve-se muito quente, temperado com pimenta, em cuias. O tucupi e a tapioca (da qual se prepara a goma), são resultados da massa ralada da mandioca que, depois de prensada para fazer farinha, resulta num líquido leitoso-amarelado. Após deixado em repouso, a tapioca fica depositada no fundo do recipiente e o tucupi na sua parte superior.
O tacacá não é considerado uma refeição. É uma espécie de bebida ou sopa, servida em cuias e vendida pelas "tacacazeiras", geralmente ao entardecer, na esquina das principais ruas das cidades paraenses, sobretudo Belém. Na hora de servir são misturados, na cuia, tucupi, goma de tapioca cozida, jambu e camarão seco. Pimenta-de-cheiro a gosto.
Serve-se em cuias. Coloca-se primeiramente um pouco de tucupi e o caldo da pimenta-de-cheiro com tucupi. Acrescenta-se a goma e arranjam-se os ramos do jambu de modo bem distribuído. Colocam-se os camarões e acrescenta-se mais tucupi até quase completar a cuia.
Toma-se o tacacá – não se diz comer, nem beber – levando-se os lábios até a cuia, sorvendo em pequenas quantidades o tucupi , misturado com a goma. Utiliza-se um palitinho de madeira para comer o camarão ou o jambu.
Dado que esta iguaria é servida muito quente, passou-se a usar uma pequena cesta na base da cuia - provavelmente a partir da década de 1990 - para proteger as mãos de quem consome o tacacá.
É habitual consumir-se o tacacá no final da tarde, em via pública, nas tradicionais tacacazeiras. Não é comum servir-se este prato nas refeições principais.
De acordo com a professora Veruschka Melo, "tomar o tacacá quente é tradicional. Toma-se a qualquer hora do dia ou da noite, independente da temperatura e do clima, pois ao contrário dos costumes de outros povos que somente no inverno costumam ingerir bebidas ou alimentos quentes, para nós, faça chuva ou faça sol, esteja quente ou frio o tacacá é sempre consumido quente".
Tacacá
Quem vai a Belém do Pará,
desde a hora em que sai
não se esquece de lá,
quer voltar.
Lembrar o açaí, o tacacá,
que saudade que dá
de Belém do Pará!
Orar na Matriz de Belém,
conversar com alguém,
como é bom recordar!
Jesus em Belém foi nascer,
eu quisera morrer
em Belém do Pará.
Tá aqui tucupi,
tem mais o jambu,
também camarão.
Quem quer tacacá?
O tacacá, toma-se?
Bebe-se?
Sorve-se?
Saboreia-se?
Não, o tacacá deseja-se, de repente, como se deseja uma mulher, como se deseja retornar ao amor da adolescência. O tacacá possui o toque agudo da saudade.. A memória de seu sabor salgado e ardente assalta-nos sem aviso, em pleno dia, em determinadas horas de distração. Naquele momento involuntário de repouso quando, por fim ao cair da tarde sobre o rio, respiramos. Certo e pequeno instante, dezenas de sugestões cruzam a mente. Todos os atos gratuitos e cheios de graça da vida: uma criança correndo na grama, braços em repouso e um regaço, mãe amamentando o filho, avião acendendo e apagando as luzes na bruma da noite, navio singrando a baía, luar úmido sobre igarapés - vontade de tomar tacacá. Desejo de tacacá. Porque, para tomá-lo, é preciso, antes de tudo, um ritual. É preciso que seja ao anoitecer. Ainda não de todo noite completa; ainda não dia findo. Àquela hora semi-crepuscular, indecisa e feminina quando, por fim, o céu se envolve de um azul-cinzento intenso ou aquela chuva antes da saída da lua. É preciso que estejamos cansados, tão fatigados que nada nos afigure mais necessário, naquele momento, do que tomar um tacacá. Nem o bate-papo informal com o amigo. Nem o café na Central. Nem o olhar à mulher que passa. Apenas, a procura, a única procura por um tacacá, com pouca pimenta ou muita e bem quente. Depois, é preciso que haja um banco. Tacacá toma-se sentado para que o corpo repouse e possa se entregar completamente ao prazer de saboreá-lo. Porque o tacacá é extremamente absorvente. Quando bem feito, o que ocorre pouco. Pois fazê-lo e tomá-lo é uma arte. É preciso, também, que a noite desponte ao chegarmos junto ao carrinho de tacacá E comece a chover, levemente. Faça algo de frio, algo de úmido. O que não é difícil em Belém. Depois, como estamos cansados e queremos esquecer, esperamos. Uma paciência longa e calma, até que a dona do tacacá termine por prepará-lo. De preferência que seja em Nazaré ou olhando a Igreja da Trindade. É preciso que o tucupi seja leve, amarelo-canário e novo. Que a goma bóie no líquido, espalhada por acaso e se mostre apenas por alguns instantes; que não haja muita folha; que os três ou quatro camarões sejam médios, nem grandes demais ou minúsculo e somente uma parte deles apareça, a ligeira carne rósea a deixar-se entrever, adivinhar-se na cuia olorosa. Depois, é preciso que haja sal e pimenta de cheiro, mas não em demasia; o suficiente para nos queimar a alma nos primeiros goles e reanimar o corpo; então renascemos para a noite e a alegria novamente nos habita. O suficiente apenas para desvanecer seu fervor após esses primeiros goles e tornar-se depois, uma presença quente, já quase uma memória, na ponta da língua. É preciso saber tomar o tacacá. Aos primeiros sorvos integralmente seu calor, sua salinidade, seu gosto de mar quente, de arbusto e molusco que os lábios experimentam fugidiamente. É preciso que o jambú e os camarões pousem lentamente no fundo da cuia e venham à boca, por si mesmos, sem o auxílio dos dedos. É necessário que não sejamos interrompidos. Apenas um aceno de cabeça aos conhecidos que passam. Um filtro mágico que se bebe em silêncio e solidão. Somente a comunicação imperceptível com a tacacazeira: feiticeira moderna numa terra onde as lendas ainda sobrevivem em um mundo que se materializa inexoravelmente. Chegados ao fim do tacacá, é preciso que o mesmo ainda se conserve morno, assim como o fim de um amor. Jamais frio. Não existe nada pior do que um tacacá frio. É como champanhe sem gelo. Neste momentos tomaremos contacto real com as grandes porções maternais de goma penetradas pelo tucupi e pela amargura das folhas. Há sempre um gato gordíssimo perto do carro de uma tacacazeira. Ele comerá, displicentemente, as cascas de camarão que atirarmos ao chão. A cuia está vazia. Agora, o mais importante: jamais repetir o tacacá, na mesma noite. A segunda cuia nunca devolverá o sabor da primeira. O primeiro tacacá daquele dia é único, autêntico, original, insubstituível como o gosto do primeiro beijo. Como a primeira entrega de amor. Porque os tecidos de nosso cansaço e de nossos desejos são satisfeitos. Porque foi necessário todo um dia infrutífero e todo um sol de toda uma chuva para alcançá-la. Todo o equívoco das relações humanas, toda a falta de solidariedade, de cortesia, de amizade e de comunicação com os outros. A decepção será fatal se arriscarmos um segundo, fiéis à gula. É preciso permitir-se um resto de fome, um resto de desejo para o dia seguinte, um resto de tristeza intransferível. Quando a baía abrir suas margens de musgo para recolher as asas do dia; quando a lua surgir em seu halo de chuva; quando chegarmos ao fim de nossas tarefas cotidianas, então, novamente, sentiremos na ponta da língua subtaneidade acre do tucupi. Paraenses, não vos espanteis com essa narrativa. O que, para vós é banal e acessível desde a infância, para um sulista é um mistério, uma surpresa e um inédito prazer. Muito comum é o visitante de outro Estado que vem a Belém pela primeira vez e olha, desconfiado, aquele grupo de pessoas ao redor de um carro de tacacá. Os movimentos das mãos da tacacazeira lavando as cuias e servindo-as, Os utensílios toscos, rudimentares. O turista, cheio de suspeitas e de teorias antissépticas, recusa-se a prová-la com argumentos de falta de higiene. Procura máquinas a vapor que sequem automaticamente as cuias. Busca torneiras reluzentes de onde jorre um tucupi sintético e insosso; e só encontra aquela magia indígena, obscura, inconsciente perante a qual recua porque seu coração não possui mais raízes fixas no mistério da natureza.. Porque não é mais um homem natural. Paraenses, vós desconheceis vossas próprias riquezas. Dia chegará a que o gigante levantará a grande cabeça de florestas de seu berço esplêndido e o Brasil será redescoberto (não mais pelos portugueses). O tacacá deixará de ser um usufruto particular e banal. E, em clima frio e chuvoso como o de São Paulo será servido à noite, entre centenas de sessões de cinemas super luxuosos. Milhares de tacacás industrializados, produzidos por intrincados mecanismos de alumínio e aço. E o mistério amazônico perder-se-á para sempre. Será recolhido ao coração de alguma floresta ainda virgem, porém, impenetrável e densa. Lá onde os homens não possam mais capturá-lo e bebê-lo, distraidamente, sem amor e sem ritos. Lá onde, enfim, seu selvagem sabor repouse intacto e inacessível no bojo do tempo."
VERA MOGILKA, jornalista gaúcha, que retratou de modo interessante o Tacacá em diversos dos seus aspectos.